quinta-feira, 15 de setembro de 2011

• Aventuras de uma Linguagem

Renata Gomes acabou fazendo faculdade de jornalismo por falta de opção: queria mesmo era cinema. Mas eis que nem mesmo a sétima arte acalmou a moça. Tempos depois, a pesquisa teórica a levou para uma paixão adormecida: os games. Radicada em São Paulo, Renata esteve, no fim do mês passado, em Fortaleza para conversar com o público dos Debates Incalculáveis, projeto da Casa Amarela, sobre os jogos eletrônicos !

Em que momento da sua vida acadêmica os games despontaram como um objeto de pesquisa?

Cheguei aos games pela via teórica, depois de uma palestra no Cine Ceará de 2000, do cineasta Roberto Moreira. Foi ele quem primeiro me chamou a atenção para os games como forma narrativa. Depois, li alguns textos, como o livro “Hamlet no Holodeck”, da Janet Murray, obra que formou uma geração de pesquisadores das “narrativas interativas” e uma das poucas lançadas no Brasil, em português. Depois de já estar cativada pelas questões teóricas do game é que fui voltar a jogar. Eu, que já sou da geração Atari/Odissey, nunca fui “viciada” em games. Um belo dia, para me aproximar do objeto até então teórico, instalei o “Tomb Raider 2” no meu Mac. Comecei a jogar umas 22h do sábado e tive que parar lá pelas 4h da madrugada de domingo, sob pena de derreter meu cérebro. A sensação de estar vivendo aquela experiência é muito forte e me deixou impressionada. Tudo o que eu tinha lido se tornou secundário e ali comecei a entender o potencial do game, não apenas para a narrativa audiovisual.

Quais as similaridades entre a narrativa cinematográfica e a narrativa dos games de personagens?

A primeira grande similaridade entre games e aquilo que chamo de cinema canônico, que costumamos chamar de “hollywoodiano”, é a linguagem audiovisual. Os games 3D, sobretudo os games de personagem, são filhos do cinema canônico na maneira como organizam visualmente o espaço. Isso acontece tanto na parte “jogável” dos games, quanto nas seqüências que costuram o jogo, estas totalmente “cinematográficas”. Mas dá pra pensar no game como a tentativa de realização de uma demanda imaginária de várias gerações, a de “entrar no filme”. Ou seja, tanto quem joga, quanto quem faz o jogo pensa em colocar o jogador no papel de protagonista de uma história com imagens e sons. Em vez de se projetar nos personagens do filme, o jogador é o personagem. Só que, para implementar isso, o game tem se afastado do cinema, porque ser o personagem implica formas narrativas bem diferentes do cânone cinematográfico. E isto é bom, só assim as coisas evoluem e acham suas linguagens, deixando de ser réplicas empobrecidas do meio anterior.

O cinema nos faz rir e chorar, resultado do envolvimento do espectador com a trama. Como os games estimulam essa inserção do jogador na narrativa?

O cinema criou formas maravilhosas de nos fazer rir, chorar, tudo a partir de um movimento de projeção/identificação com os personagens que vemos na tela. Um dado marcante do cinema é nos aproximar de todo e qualquer personagem, não apenas protagonistas. No caso do game, o processo de identificação do jogador com o personagem se dá primariamente a partir da corporificação deste pelo jogador. Jogando, a gente controla um personagem, faz ele andar, correr, pular, atirar, não atirar… E, para cada atitude dessas, colhemos as conseqüências dos nosso atos. O bacana do game está justamente aí: viver a experiência de suas ações, colher as conseqüências delas, para o bem e para o mal. A partir daí, as menores atitudes podem trazer um envolvimento enorme, partindo do nível da corporalidade até os mais sofisticados sentimentos. É certo que ainda estamos começando a explorar o videogame e não se podem fazer previsões, mas, com os games que temos hoje, já dá pra viver alguns momentos muito interessantes, sobretudo na interação com o ambiente do jogo e com outros personagens (operados pelo computador).

Uma das benesses das novas tecnologias é a interatividade. Qual o nível de interação que os games atuais promovem?

Uma das coisas mais interativas da tecnologia digital está nos games. Talvez a mais interativa. E isto ocorre de diversas formas. Falar de interatividade e games é quase chover no molhado, porque o jogo – qualquer jogo, digital ou não – é interativo por definição. O jogo é um ser-jogado. Nos games, nos bons games, pelo menos, a gente pode alcançar níveis de interatividade extremos, chegando a um estado que alguns chamam de “fluxo”, onde estamos tão absolutamente envolvidos com o jogar que praticamente nos tornamos parte integrante desse sistema. Ontem mesmo, jogando “Guitar Hero”, me peguei num estado desses de fluxo. Nosso pensamento vai para outro nível, não é “racional”. A gente meio que “vira” game, o corpo parece entrar no software. Ou quem sabe o contrário: o software se compõe com nosso corpo. Isso até acontece de forma mais plena em jogos não-narrativos, como Guitar Hero e também, por exemplo, Tetris, um dos melhores games de todos os tempos. Mas isso também acontece em jogos pré-digitais e até mesmo em dinâmicas como a da capoeira. É outra chave de criação de sentido. É interessante pensar na interatividade dessa forma e não na possibilidade de clicar em opções pré-determinadas. Nesse sentido, da interatividade como um fluxo no qual sistema e interator se compõem, os games são a forma mais plena a que temos acesso hoje.

A violência e o maniqueísmo são pano de fundo de muitos games, o que lhes atribui um juízo de valor negativo pelo público. Será que é possível unir estética e ética nos games?
 
Certamente é possível. Talvez até mais do que no cinema e na TV, se pensarmos no game de personagem e como, nele, a gente colhe as conseqüências dos nossos atos, para o bem e para o mal. Podemos pensar num game onde o jogador sofra maiores conseqüências ao matar um companheiro, ou mesmo um inimigo. Sobretudo, podemos pensar num jogo onde matar e não matar tragam conseqüências ricas, não necessariamente maniqueístas, boas ou ruins. Há um jogo, cujo nome agora não vou lembrar, onde, se você sair atirando a esmo, os outros personagens, todos autônomos (implementados pela máquina), se viram contra você, te emboscam e você morre. E a primeira vez que isso acontece é algo aterrador, porque ninguém está preparado para essa “reação” deles, justamente porque, na maioria dos games de tiro, a gente atira, atira, mata, mata e “nada” acontece. É uma experiência poderosa. Ainda há poucos games explorando esse viés ético, até porque é bem mais complicado criar algo assim, do ponto de vista da programação, do que um jogo simples de tiro. Mas o caminho é promissor.

Falando do ponto de vista de pesquisadora e jogadora, como seria o seu game ideal?

Acho que meu game ideal ainda não existe. Gostaria muito de ver – ou melhor, de jogar – um game onde cada uma de minhas atitudes tivesse uma conseqüência realmente dramática, para o bem e para o mal, independente do caminho que eu escolha tomar. Dois games que tentam fazer algo minimamente nessa linha, cada uma à sua maneira, são os da série “Grand Theft Auto” e “Black & White”. No primeiro, a gente pode percorrer um mundo riquíssimo de uma maneira bem intuitiva e autônoma, o que é super importante para criar a sensação de imersão e de presença que fazem dos jogos de personagem essa forma potencialmente narrativa. No “Black & White” o grande barato é nossa interação com uma personagem autônoma bem mais complexa do que 99% dos games. Interagir com essa personagem e ver suas reações, a partir de nossos atos, é escandalosamente envolvente. Um jogo que combine bem essas duas vertentes tem, a meu ver, tudo para ser um marco histórico. Mas ainda há muito caminho pela frente, em termos estéticos e técnicos. No meio dessa jornada, sigo jogando meus games favoritos: os da série “Tomb Raider”, onde eu/Lara Croft barbarizamos em aventuras, e “Guitar Hero”, que, aliás, não tem nada de narrativo!

Fonte: Diário do Nordeste 

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